Isabella Nardoni, o silĂȘncio no sexto andar
- Tilara Neutzling
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Edição 2
Por Tilara Neutzling, PsicĂłloga PĂłs-graduada em Investigação Forense e PerĂcia Criminal
Isabella Oliveira Nardoni nasceu em 18 de abril de 2002, fruto da uniĂŁo entre Alexandre Nardoni e Ana Carolina Oliveira. O relacionamento terminou de forma conturbada quando a menina tinha pouco mais de um ano, passando a viver com a mĂŁe e a visitar o pai nos fins de semana estipulados pela Justiça. Embora o arranjo parecesse funcional, havia tensĂ”es latentes e disputas de bastidores que se intensificaram com a entrada de Anna Carolina JatobĂĄ na vida de Alexandre. Sob a superfĂcie de normalidade, cresciam ressentimentos, competiçÔes e uma atmosfera hostil que, com o tempo, moldaria o cenĂĄrio para o desfecho mais trĂĄgico possĂvel.
Na noite de 29 de março de 2008, o paĂs foi surpreendido por uma notĂcia devastadora: Isabella, entĂŁo com cinco anos, foi encontrada sem vida apĂłs cair do sexto andar do edifĂcio London, na zona norte de SĂŁo Paulo. A princĂpio tratada como um acidente, a ocorrĂȘncia logo passou a ser investigada com atenção minuciosa. Sinais de agressĂŁo, alteraçÔes na cena e contradiçÔes nos depoimentos abriram caminho para a suspeita de que a queda nĂŁo fora fruto do acaso, mas consequĂȘncia direta de uma ação violenta dentro do prĂłprio apartamento.
Alexandre Nardoni havia sido criado em um ambiente de hierarquia rĂgida e autoridade inflexĂvel, sob a forte influĂȘncia do pai, AntĂŽnio Nardoni. Esse modelo, pautado no controle e na manutenção das aparĂȘncias, moldou nele uma forma de relacionamento em que a obediĂȘncia e a preservação da imagem do grupo eram mais valorizadas do que a expressĂŁo genuĂna de conflitos. Nesse contexto, as visitas de Isabella ao pai nĂŁo eram apenas encontros familiares, mas tambĂ©m momentos em que essa lĂłgica de comando e preservação da fachada se impunha sobre qualquer diĂĄlogo aberto sobre desavenças ou dificuldades.
Com a chegada de Anna Carolina JatobĂĄ, tensĂ”es jĂĄ existentes se intensificaram. Descrita por testemunhas como alguĂ©m de temperamento impulsivo, baixa tolerĂąncia a frustraçÔes e comportamento competitivo, ela passou a disputar espaço e afeto na relação de Alexandre com a filha. Registros indicam restriçÔes de contato, atitudes hostis e constantes atritos velados. Ao invĂ©s de atenuar conflitos, a presença de JatobĂĄ reforçou uma aliança conjugal que se sobrepunha Ă s necessidades emocionais de Isabella, isolando-a progressivamente dentro daquele nĂșcleo.
Naquele fim de semana, Isabella estava sob os cuidados do pai e da madrasta. Depoimentos de vizinhos indicaram discussĂ”es e ruĂdos incomuns pouco antes da queda. A perĂcia apontou que a janela pela qual a menina foi lançada apresentava sinais de manipulação e que a sequĂȘncia de acontecimentos descrita pelo casal nĂŁo era compatĂvel com as evidĂȘncias. As investigaçÔes sugeriram que nĂŁo se tratou de um rompante isolado, mas de um episĂłdio que envolveu agressĂŁo fĂsica prĂ©via, tentativa de encobrir vestĂgios e a formulação imediata de uma versĂŁo para confundir as autoridades. Esse conjunto de açÔes revela nĂŁo apenas violĂȘncia, mas tambĂ©m cĂĄlculo e cooperação mĂștua.
ApĂłs o crime, um gesto especĂfico chamou atenção: a avĂł paterna, Maria LĂșcia Nardoni, retirou os irmĂŁos de Isabella do convĂvio com o casal. Embora nĂŁo tenha declarado abertamente suas razĂ”es, a decisĂŁo sugere percepção de perigo iminente. Em contextos de lealdade interna tĂŁo rĂgida, afastar crianças de um nĂșcleo geralmente Ă© um indicativo de que algo grave foi compreendido, ainda que de forma nĂŁo verbalizada.
A investigação tambĂ©m expĂŽs um padrĂŁo de funcionamento herdado ao longo das geraçÔes: proteção da imagem acima da verdade, minimização de conflitos graves e manutenção de pactos tĂĄcitos mesmo diante de evidĂȘncias incontornĂĄveis. A permanĂȘncia de Alexandre e JatobĂĄ como casal apĂłs o crime reforçou a prioridade dada Ă coesĂŁo interna sobre qualquer responsabilização moral.
Relembrar a histĂłria de Isabella nĂŁo Ă© apenas revisitar um crime de extrema violĂȘncia contra uma criança indefesa. Ă compreender como dinĂąmicas de controle, competição e negação sistemĂĄtica de problemas podem criar um ambiente onde a opugnação encontra espaço para prosperar. Isabella nĂŁo foi assassinada por obra do destino; foi engolida por um sistema relacional corroĂdo, onde afeto se transformou em posse, zelo em disputa e confiança em traição deliberada. Sua morte expĂŽs de forma crua a capacidade humana de destruir aquilo que deveria proteger a todo custo