O BERÇO
- Guerda Maria Kuhn
- há 2 dias
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Por Maria Alice Estrella
Algum tempo atrás, numa conversa casual com alguém que eu acabara de conhecer, por essas coisas que não se explicam, trocamos impressões e experiências sobre a história de vida de ambos. Para surpresa minha, me foi pedido veementemente que eu escrevesse sobre capítulos do enredo que foram sendo tecidos no decorrer dos meus dias desde o nascimento.
Relutei em fazer esses relatos e o meu interlocutor deve ter buscado, em cada crônica publicada no jornal, o texto que tanto insistira para ser escrito. Tomara que ele leia minhas linhas e veja satisfeito o seu pedido.
Pois bem, nasci numa noite de domingo de muita chuva em Porto Alegre onde vivi até os dezoito anos de idade. Meus pais, muito jovens, enfrentaram inúmeros revezes antes e depois do meu nascimento. Eram muito pobres e mal tinham condições de se manter. E cheguei para dificultar mais as coisas, mesmo sendo recebida com muitas lágrimas de emoção e intenso amor.
Eles faziam só uma refeição por dia para que lhes fosse possível comprar o leite para minha alimentação. Meu pai trabalhava dia e noite em um emprego com salário precário e minha mãe cuidava de mim, sem condições de exercer sua profissão de professora.
Os meus primeiros meses foram difíceis para eles que queriam me dar as estrelas e se consolavam com o amor mútuo entre quatro paredes à luz de velas. Eu soube, depois de muitos anos, contado por uma tia, que eu não tinha berço e dormia na pequena cama com meus pais. Eu caía dessa cama quase sempre até que meu pai conseguiu uma caixa grande de papelão numa loja da vizinhança. Eu tinha 3 meses de vida.
Acomodaram um cobertor para forrar a caixa de papelão e a partir de então eu passei a dormir no berço improvisado. Eles nunca me falaram sobre isso e quando eu soube quis muito abraçá-los para dizer da emoção que me invadiu. Mas eles já não estavam ao meu alcance tátil.
E assim foi, de dificuldade em dificuldade, que a menina cresceu sorrindo muito porque a alegria sempre foi sua marca registrada. Muitos obstáculos, muitas lutas e muita coragem foram as marcas registradas dos meus pais.
Sem amargura e com muito orgulho eu descendo de fortes e bravos que venceram as vicissitudes da vida e vieram à tona de todos os naufrágios pela força do amor.
O afeto e a valentia deles foram a herança que me forjou guerreira. Fui criada com escassez de dinheiro, mas com fartura de conhecimentos. Seus ensinamentos me acompanham até hoje. Onde faltavam bens materiais, abundava a cultura, a música, a poesia, a sabedoria.
Muitos outros episódios eu poderia narrar com detalhes sobre a infância de simplicidade que tive. Por ora, compartilho o meu berço de papelão, extremamente significativo para mim. Eu não dormia ao relento, dormia no acalanto dos pais maravilhosos que Deus me deu.
Hoje, quando volto a cabeça sobre o ombro das lembranças, sou capaz de revê-los como fachos de luz, assinalando o caminho que logrei alcançar até aqui.
Os sacrifícios e a dedicação de ambos lapidaram o semblante da minha alma desde aquele berço de papelão. E, talvez, eles nunca tenham sabido disso.
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