Edição 10 - Pânico: Quando o terror atende o telefone
- Tilara Neutzling
- há 11 minutos
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COLUNA: SEXTAS DO CRIME, EDIÇÃO ESPECIAL DE HALLOWEEN
Por Tilara Neutzling, Psicóloga Pós-graduada em Investigação Forense e Perícia Criminal
O terror de Pânico (1996) nunca foi apenas sobre um assassino mascarado empunhando uma faca. Foi sobre o rosto que ninguém vê, e o quanto de nós mesmos existe nesse anonimato. Ghostface é o corpo, a voz e a encenação de um mal que muda de rosto a cada filme, mas mantém o mesmo discurso: o prazer de transformar o medo em espetáculo.
Quando Wes Craven criou o personagem, deu nova vida ao gênero slasher, resgatando a brutalidade dos anos 1980 e mesclando-a com a ironia autoconsciente dos anos 1990. E, na intersecção entre o cinema e a psicologia criminal, Ghostface é mais do que um vilão — é um estudo sobre a banalização da violência, a performatividade do crime e a necessidade humana de pertencer, mesmo que ao horror.
O ponto central da narrativa sempre foi a alternância de identidades. Ghostface nunca é apenas um indivíduo: é uma sucessão de pessoas — amigos, amantes, fãs, irmãos, jornalistas — que assumem a máscara e o discurso. Essa multiplicidade desloca o crime da figura do assassino isolado para a ideia de contágio social: cada novo Ghostface não age apenas por impulso pessoal, mas como continuidade de uma tradição de sangue.
No plano psicológico, o arquétipo traduz a despersonalização contemporânea — sujeitos que, por meio da máscara, se libertam das consequências do eu. Na criminologia, esse fenômeno se aproxima do conceito de crime mimético, em que o ato violento se reproduz pela imitação de um modelo, quase sempre revestido de glamour.
Ghostface, então, é um espelho: o assassino se mascara não apenas para ocultar-se, mas para tornar-se “alguém”. A máscara oferece o anonimato necessário para que o reprimido aflore — a raiva, o ciúme, o ressentimento, o desejo de reconhecimento.
Os primeiros assassinos da saga, Billy Loomis e Stu Macher, ilustram esse princípio com precisão clínica. Billy carrega o ódio recalcado pela infidelidade da mãe de Sidney Prescott, projetando na vítima o trauma da traição — um perfil paranoide e vingativo, com traços de transtorno de personalidade borderline e impulsos sádicos. Stu, por sua vez, representa a coautoria motivada pela necessidade de aprovação: um seguidor impressionável, que encontra no crime a única forma de validação.
Juntos, eles inauguram o conceito de dupla psicopática — a simbiose entre um líder manipulador e um cúmplice sugestionável.
Ao longo das sequências, o enredo expande essa leitura para novas gerações. Os assassinos seguintes não matam apenas por ódio, mas pela ânsia de significar algo.
Em Pânico 4, por exemplo, Jill Roberts mata para tornar-se famosa — uma antecipação assustadora da cultura de viralização, em que o crime é meio de reconhecimento. Já em Pânico 5 e 6, a identidade de Ghostface passa a ser reivindicada por fãs obsessivos, como se o ato homicida fosse parte de uma saga coletiva, uma mitologia compartilhada.
A violência deixa de ser individual e se torna participativa. A psicopatia aqui assume um novo contorno: não é mais a ausência de empatia apenas, mas o esvaziamento do eu em prol de um papel social — o assassino que busca “pertencer à narrativa”.
Essa dimensão simbólica transforma Ghostface num fenômeno quase sociológico. O telefone, instrumento clássico dos ataques, representa a mediação entre o real e o virtual: o terror começa com uma voz, não com um rosto.
O anonimato sonoro antecipa o que hoje se vive nas redes — a agressão, o linchamento, o ódio disfarçado de curiosidade. O jogo de perguntas sobre filmes de terror é mais do que sadismo; é uma metáfora sobre conhecimento e controle. Ghostface mata quem “erra a resposta”, como se a ignorância fosse uma sentença.
É o culto ao saber pop transformado em tribunal moral e, sob o prisma psicológico, uma racionalização do poder: quem domina o medo do outro domina sua vida.
Sob a lente da psicologia criminal, Ghostface é a representação do homicida com motivação múltipla e racionalidade flexível. Ele combina traços de transtorno antissocial (falta de remorso, manipulação, impulsividade) com elementos narcisistas e paranoides, em que o outro é percebido como ameaça à própria imagem.
O ato homicida, nesse contexto, é performático — uma encenação com plateia. O assassino fala, grava, dirige, transforma o assassinato em roteiro. Essa teatralidade aproxima o modus operandi de Ghostface do conceito de crime espetáculo, em que a execução é planejada para gerar impacto simbólico, não apenas eliminar a vítima.
Outro aspecto fascinante é o caráter coletivo do mal. O fato de haver sempre dois ou mais assassinos por trás da máscara relativiza a noção de responsabilidade individual. O homicídio passa a ser um ritual de cumplicidade, um pacto narcísico em que ambos se alimentam do mesmo delírio de grandeza.
Essa dinâmica ecoa o conceito de “coautoria psíquica”, presente em casos reais de crimes em duplas, nos quais há uma fusão de identidades e dissolução de limites morais. Assim, Ghostface não é apenas um assassino — é um vínculo.
Se outros slashers representam forças sobre-humanas, Ghostface é assustador justamente por ser humano demais. Ele não tem poderes, não ressurge do além, não é um monstro invencível. É alguém com motivações compreensíveis — inveja, rejeição, abandono, desejo. Isso o torna o mais realista entre os ícones do horror.
E é por isso que Pânico não envelhece: porque fala sobre o medo que continua possível — o medo de que qualquer pessoa, atrás de uma máscara, possa decidir que o próprio sofrimento é justificativa para matar.
No campo simbólico, a máscara de Ghostface é a materialização do vazio. O olhar que é um breu e o sorriso distorcido expressam a ausência total de emoção — um rosto sem expressão para conter todas as expressões.
A escolha estética, inspirada no quadro O Grito, de Edvard Munch, reforça a ideia de terror existencial: o assassino e a vítima são dois reflexos do mesmo desespero. O primeiro grita por controle, o segundo por sobrevivência — e ambos revelam o pânico essencial de viver em um mundo onde a identidade é sempre uma performance.
O legado de Ghostface, portanto, não é apenas cinematográfico. Ele representa o colapso das fronteiras entre verdade e ficção, violência e entretenimento.
Cada geração de assassinos reproduz o mesmo enredo com novas motivações, e o público, cúmplice, continua assistindo.
Talvez o verdadeiro terror de Pânico não esteja no sangue, mas na plateia. No fascínio por quem mata com estilo, na curiosidade mórbida pelo rosto por trás da máscara — e na sensação incômoda de que, no fundo, todos nós usamos uma.
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