Edição 18- Henry Borel: Quando a proteção falha
- Tilara Neutzling

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COLUNA: SEXTAS DO CRIME.
Por Tilara Neutzling, Psicóloga Pós-graduada em Investigação Forense e Perícia Criminal
Henry Borel Medeiros, 4 anos, nascido em 14 de fevereiro de 2016, no Rio de Janeiro, morreu na madrugada de 8 de março de 2021. Residia com a mãe, Monique Medeiros, professora, e o padrasto, Jairo Souza Santos Júnior, conhecido como Dr. Jairinho, médico e ex-vereador do município do Rio de Janeiro. O óbito ocorreu no apartamento do casal, localizado na Barra da Tijuca, zona oeste da cidade.
A versão inicial apresentada ao hospital e posteriormente reiterada à polícia foi a de que a criança teria sofrido uma queda da cama durante a madrugada. Essa narrativa foi sustentada de forma uniforme pelos adultos responsáveis, sem variações relevantes nas primeiras comunicações oficiais. No entanto, desde o primeiro exame pericial, a hipótese de acidente doméstico simples se mostrou incompatível com os achados médicos.
O laudo necroscópico apontou múltiplas lesões corporais, internas e externas, em diferentes fases de cicatrização, indicando violência reiterada. Foram identificadas lesões no fígado, lacerações internas, hemorragias e sinais de agressões pretéritas. Esse dado é central do ponto de vista investigativo: a presença de lesões antigas descaracteriza a ocorrência de um evento único e desloca o caso para a categoria de maus-tratos prolongados com desfecho letal.
Do ponto de vista da dinâmica criminal, o caso passa a ser tratado como homicídio qualificado, com especial atenção à continuidade delitiva anterior à morte. A investigação deixa de buscar apenas a causa do óbito e passa a reconstruir o histórico de violência sofrido pela vítima. Nesse tipo de crime, o corpo funciona como arquivo. As marcas registram o tempo, a frequência e a intensidade da agressão.
A atuação de Jairinho Santos ganha relevância não apenas pela posição de padrasto, mas por sua formação médica. O conhecimento técnico básico sobre limites corporais, risco de morte e sinais clínicos confere maior peso à hipótese de dolo eventual ou até dolo direto. Não se trata de um leigo que desconhecia as consequências de agressões físicas em uma criança de quatro anos. Esse elemento é considerado agravante na análise penal.
A conduta pós-fato também foi determinante na condução da investigação. Houve demora no acionamento de socorro adequado, inconsistências nos horários apresentados e tentativa de sustentação de uma narrativa única, mesmo diante de contradições objetivas. Em crimes dessa natureza, esse comportamento é interpretado como indicativo de tentativa de ocultação e não como reação desorganizada ao choque de um acidente.
Do ponto de vista da criminologia aplicada, o perfil do agressor se enquadra no padrão de violência disciplinar extrema. Não há indícios de violência impulsiva isolada. As lesões repetidas sugerem padrão de correção coercitiva, em que a criança é submetida a punições físicas sob a justificativa interna de controle comportamental. Esse tipo de agressor costuma apresentar rigidez cognitiva, baixa tolerância à frustração e necessidade elevada de domínio do ambiente doméstico.
A vítima, por sua vez, apresenta o perfil clássico de vulnerabilidade absoluta. Criança pequena, dependente, sem capacidade de denúncia efetiva, inserida em núcleo familiar fechado. A ausência de registros formais anteriores não indica ausência de violência, mas falha de detecção. Crimes contra crianças pequenas tendem a permanecer invisíveis até o evento fatal ou quase fatal.
A cena do crime, neste caso, não se limita ao quarto ou ao momento da morte. Ela se estende à rotina doméstica, à repetição das agressões e à normalização progressiva da violência. A tentativa de enquadrar o óbito como acidente comum não é casual. A queda da cama é uma das narrativas mais frequentes em mortes infantis por agressão justamente por sua aparência de plausibilidade. A perícia, no entanto, afasta essa hipótese de forma técnica e consistente.
Juridicamente, o caso envolve homicídio qualificado, tortura e maus-tratos, além de possível omissão e participação ativa por parte da genitora, conforme avaliação do conjunto probatório. A análise não se concentra apenas no ato final, mas na cadeia de comportamentos que permitiram que a violência se perpetuasse sem interrupção.
O caso Henry Borel não se sustenta como tragédia doméstica. Ele se configura como crime continuado, praticado em ambiente de confiança, com assimetria total de poder entre agressor e vítima. A relevância do caso reside menos na comoção pública e mais na exposição de um padrão recorrente de violência infantil que só se torna visível quando o desfecho é irreversível.
Henry não morreu em decorrência de um evento acidental. Morreu ao final de um processo de agressões sucessivas, praticadas em um espaço privado, sustentadas pelo silêncio e interrompidas apenas quando o corpo já não resistiu.









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