Imagine um personagem, que nas décadas de 70 e 80 andava nas noites de verão pelas ruas de terra de uma pequena cidade do Sul do Brasil, embalado ao som da boa música orquestrada de Benny Goodman, por exemplo. Imagine que os passos desse personagem são conduzidos e embalados por essa música a ponto do mesmo ir caminhando absorto, acompanhado apenas por sua sombra, projetada no chão pelo luar. Além de sua música, percebe-se no ar apenas o som dos grilos e dos sapos. O chão é salpicado aqui e ali por persistentes lampejos de vaga-lumes. Quem seria ele? Um herói romântico patrulhando a cidade em defesa de seus habitantes? Um velho músico aposentado relembrando as antigas melodias, as quais tocara em outras épocas? Nada disso! O personagem é um homem comum, trabalhador, pai de família.
Após mais um dia de trabalho, ele chega em casa, conversa e janta com a esposa e os filhos. Após o jantar, senta-se acompanhado da família em uma cadeira na frente da casa, velho costume dos habitantes das cidades do interior. Enquanto cumprimenta um vizinho e outro que passa a pé pela rua, manuseia no colo um rádio transistorizado Philips. Após sintonizar outras estações de rádio A.M., a escolhida de todas as noites é impreterivelmente, a rádio Guaíba de Porto Alegre, a capital do estado. De repente, as conversas cessam, as risadas silenciam e, vagarosamente, nosso personagem levanta. Com o rádio nas duas mãos, começa a caminhar até a esquina. Vira a direita e segue sempre em frente por oito, dez, doze quadras. Os passos são lentos, mas cadenciados. Não demonstram pressa, mas são compassados. Os dedos polegares passeiam aleatoriamente pelos botões de volume e de sintonia do rádio. Ora o volume é erguido para que a música agradável aos ouvidos seja melhor sentida, ora é feita uma sintonia fina pois a emissora está “fugindo” do ouvido. O olhar acompanha o movimento de pedestres que passam, de cachorros nos quintais e de gatos nos muros. Por vezes, se fixa no céu. Conta estrelas, mira o luar. Quantas estrelas cadentes ele já teria visto? Pelas pouco iluminadas, porém ainda seguras ruas, ele continua o seu caminho até parar às margens da imensa, bela e majestosa Lagoa dos Patos. Lá, senta-se e fica a admirar as ondas quebrando na praia, ouvindo as folhas dos plátanos caindo e por vezes distraindo-se com os poucos automóveis que por ali passavam. A lua é insistentemente refletida na imensidão das águas. Entre uma música e outra, surge a voz clara e ritmada do locutor de plantão na distante Porto Alegre. Aí, como por encanto, o nosso personagem acorda com os olhos já abertos, percebe onde se encontra e sente como é bom estar ali. A rua tranqüila, a noite quente, a luz do luar, o brilho das estrelas e a boa música o haviam trazido até ali. ]
Era, ao mesmo tempo, um simples passeio de cidade de interior e algo mágico! Sim, ele havia sido conduzido até aquele lugar encantado, guiado pela música. Seus pensamentos eram conduzidos de tal forma a fazer essa pequena e mágica viagem, praticamente sem perceber. Eu era pequeno, mas em conversas com nosso personagem, me foi confidenciado que era assim que acontecia. Magia? Vontade de pensar na vida? Fuga do mundo real por uma ou duas horas? Não sei. Só sei que a história, para mim, é bonita. Afinal, eu a presenciei. Uma, algumas, várias vezes. O cenário? São Lourenço do Sul. O personagem? Era meu pai! Em sua simplicidade, era alguém que amava a sua família, adorava a sua cidade e se encantava com a sua Lagoa dos Patos e com a boa música que vinha pelas ondas do rádio, através da escuridão. Bons tempos aqueles! Belas sensações! Boas lembranças! Que saudades!
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