Edição 8 - O silêncio atrás da máscara: Michael Myers
- Tilara Neutzling

- 3 de out.
- 4 min de leitura
COLUNA: SEXTAS DO CRIME, EDIÇÃO ESPECIAL DE HALLOWEEN
Por Tilara Neutzling, Psicóloga Pós-graduada em Investigação Forense e Perícia Criminal
Em 1978, John Carpenter apresentou ao mundo um personagem que mudaria para sempre o gênero do terror: Michael Myers. Com a máscara branca inexpressiva, a respiração pesada e a faca de cozinha em mãos, ele não era apenas um vilão. Era o silêncio encarnado. Um vazio que andava, perseguia e matava. Diferente de tantos outros monstros do cinema, Myers não precisava falar, explicar ou justificar. Ele simplesmente estava lá, como se fosse a própria essência do mal, uma presença inevitável que se arrasta com passos lentos, mas sempre certeiros.
A força de Michael Myers não está na brutalidade explícita, mas no contraste. Enquanto suas vítimas correm, gritam, imploram, ele caminha devagar, como se soubesse que o fim já estava escrito. Esse é o detalhe que o torna perturbador: ele não tem pressa, não demonstra emoção, não hesita. O que ele transmite é a ideia de que a violência não é apenas um ato de fúria, mas uma inevitabilidade. Um destino. No subúrbio tranquilo de Haddonfield, onde casas com abóboras decoradas e ruas pacatas deveriam representar segurança, Myers introduziu o terror mais angustiante: o de que o perigo mora ao lado, no silêncio da vizinhança.
A história começa quando Michael, ainda criança, assassina sua irmã mais velha na noite de Halloween de 1963. Sem razão aparente, sem traumas visíveis, sem abusos ou gatilhos. Apenas um garoto que, aos seis anos, decide matar. E talvez seja isso que incomode tanto. Não existe explicação que nos conforte. Não existe resposta que alivie. Myers nasceu como um enigma e continua sendo, mesmo depois de décadas e inúmeras sequências da franquia. Ele cresceu internado em uma instituição psiquiátrica, observado pelo Dr. Loomis, psiquiatra que se tornaria seu maior antagonista. Mas mesmo ali, sob olhos atentos, nunca ofereceu pistas. Nunca demonstrou culpa, nunca demonstrou raiva. Apenas silêncio.
Esse silêncio é parte de sua força. Diferente de vilões falastrões, como Freddy Krueger, Myers construiu sua aura no não dito. Ele não precisa explicar por que mata. Ele não precisa convencer ninguém. Ele apenas existe, e sua existência basta para destruir. O Dr. Loomis tentou, repetidas vezes, alertar as pessoas de Haddonfield de que Michael não era humano. Para ele, o garoto que conheceu nos corredores da clínica já havia deixado de ser gente muito cedo. Era, em suas palavras, “o mal puro”. Essa definição atravessou os filmes, criando uma discussão que dura até hoje: Michael Myers é um homem ou uma entidade?
Essa dúvida o coloca em um lugar especial dentro da cultura do terror. Se for apenas um homem, é aterrorizante porque representa a banalidade do mal: alguém aparentemente comum, mas capaz de atrocidades impensáveis. Se for uma entidade, é aterrorizante porque se torna impossível de deter: você não pode matar aquilo que não vive, você não pode aprisionar aquilo que não pertence ao mundo real. Nos dois cenários, o medo se mantém. O público não quer, necessariamente, respostas. Quer a experiência de olhar nos olhos vazios da máscara e sentir que está diante de algo que não deveria existir.
A figura de Myers dialoga com arquétipos antigos. A máscara branca, sem expressão, lembra rostos mortuários. Seus movimentos lentos remetem a fantasmas ou à própria morte, que nunca corre — mas sempre chega. Sua arma, uma faca de cozinha, é simples, cotidiana, banal. Não é uma serra elétrica, não é um arsenal sofisticado. É o objeto mais comum da casa transformado em instrumento de horror. Essa banalidade da violência é o que aproxima Michael de uma dimensão mais assustadora: ele não é apenas um assassino de cinema, ele é um reflexo distorcido do perigo que pode morar em qualquer lar.
Outra característica marcante é sua obsessão pelo retorno. Myers escapa da instituição, retorna a Haddonfield, persegue Laurie Strode, sua irmã nos cânones posteriores da franquia. Esse ciclo infinito de voltar, matar, desaparecer e reaparecer cria a sensação de que ele não pode ser vencido. A cada novo capítulo, quando acreditamos que foi detido, queimado, alvejado, enforcado, ele volta. Essa imortalidade simbólica transforma Michael Myers em mais do que um personagem: ele é um mito. Um mito do mal que nunca morre, porque representa algo que nunca desaparece de fato da sociedade.
Ao longo das décadas, cada filme acrescentou camadas ao mito de Myers. Alguns tentaram explicar sua origem, outros preferiram manter o mistério. Mas, curiosamente, quanto mais explicações surgem, mais o público sente que perde algo. Porque o verdadeiro terror de Michael Myers não está em um trauma específico ou em uma justificativa psicológica. Está justamente no contrário: no vazio. Ele mata porque mata. Porque pode. Porque o mal, às vezes, não precisa de motivo.
Essa ausência de explicação também o diferencia de outros assassinos fictícios. Jason mata por vingança. Freddy mata porque foi queimado vivo pelos pais das crianças. Ghostface mata por planos pessoais e manipulações. Mas Michael Myers não precisa de nada disso. Sua motivação é o silêncio. É o vazio. É a noite. Por isso ele é chamado, em muitos dos roteiros, apenas de “The Shape” — a Forma. Não um homem, mas uma sombra.
O impacto cultural de Michael Myers é inegável. Ele abriu caminho para o gênero slasher, inspirou dezenas de filmes e gerou uma legião de fãs. Sua presença na cultura pop não é apenas a de um assassino icônico, mas a de um símbolo do Halloween em si. A cada outono americano, máscaras de Myers se espalham pelas lojas, crianças se fantasiam, maratonas de filmes acontecem. Ele transcendeu a tela e se tornou parte do ritual. O Halloween sem Michael Myers parece incompleto, porque ele encarna exatamente a essência da data: o medo de que o mal caminha entre nós, mascarado, esperando o momento certo para atacar.
No fim, talvez o mais perturbador em Michael Myers seja a forma como nos obriga a encarar a ausência de lógica. Somos treinados a buscar sentido, a encontrar justificativas, a entender por que alguém cometeu um crime. Mas Myers não nos dá essa chance. Ele cala, observa, segue. Ele não quer nada além da destruição. E é esse silêncio absoluto, esse olhar vazio por trás da máscara, que ecoa como a lembrança mais aterradora de todas: o mal não precisa explicar a si mesmo. Ele simplesmente existe.









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